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As grandezas do mundo físico, como distâncias, dimensões, pesos ou o passar do tempo, provavelmente sempre intrigam o homem, mas os vestígios e registros históricos indicam que este só começou a tentar definir tais grandezas com alguma previsão em épocas mais recentes. O uso de partes do corpo, como o pé e a mão, para comparar tamanhos, e do movimento do Sol e da Lua para avaliar o tempo talvez sejam os mais antigos sistemas de medida humanos. Aos poucos, as necessidades criadas por avanços sociais e tecnológicos (agricultura, comércio, navegação e outros) fizeram surgir novos sistemas de comparação, mas estes continuavam a ser imprecisos e variáveis. Para que as medições fossem entendidas por qualquer pessoa, em qualquer lugar (ou seja, tivessem fácil reprodução), e expressassem fielmente as grandezas (ou seja, tivessem precisão) era necessário estabelecer sistemas de uso comum (padrões) baseados em comparações com grandezas naturais que variassem o mínimo possível. Medidas ainda incertas como palmos e passos, assim como subdivisões do tempo obtidas em ampulhetas e relógios de Sol e de água, chegaram a ser empregadas em muitos locais, mas também tinham grande margem de erro. Até hoje países como Inglaterra e Estados Unidos usam medidas como polegada, pé, jarda e outras, baseadas no corpo humano. O estabelecimento de padrões de medida mais precisos data de pouco mais de três séculos, e desde o início o conhecimento científico teve papel preponderante. À medida que a ciência evoluiu, determinando as constantes físicas fundamentais, todos os padrões foram alterados e as grandezas passaram a ser definidas com precisão cada vez maior, através de unidades básicas como o metro padrão, o quilograma padrão e o segundo. O metro padrão, por exemplo, foi durante muito tempo a distância entre duas marcas em uma barra de platina e irídio (a 00C), mas hoje já é definido por determinado número de comprimentos de onda de uma faixa do espectro Luminoso emitido, sob certas condições, pelo gás criptônio. Tal padrão permite medições de precisão muito maior e também de mais fácil reprodução. Na área da metrologia de tempo e freqüência, as necessidades tecnológicas têm estimulado um rápido desenvolvimento. Há dois mil anos os navegadores já usavam astrolábio, que lhes dava, com base na posição relativa das estrelas, uma razoável noção da localização da embarcação e da passagem do tempo. Entre os séculos XVI e XVII, no entanto, a melhoria do sistema de navegação marítima, com viagens a longas distâncias, exigiu medidas de tempo mais precisas, para que a posição do navio fosse determinada com menor margem de erro. Essa necessidade levou ao surgimento de relógios mecânicos cada vez mais precisos. Com o aparecimento de técnicas de radar e telecomunicação, nos anos 30 e 40 deste século, a precisão dos relógios mecânicos mostrou-se insuficiente, levando aos relógios de quartzo. A substituição das oscilações mecânicas por oscilações eletrônicas, baseadas em certas propriedades elétricas de cristais de quartzo, permitiu aumento considerável na precisão das medidas de tempo. Os osciladores de quartzo são menos suscetíveis a abalos que os mecânicos, mas ainda dependem fortemente do tamanho e da forma do cristal. A produção de dois cristais perfeitamente idênticos é tecnicamente muito difícil, impedindo que um padrão de tempo e freqüência com base em relógios desse tipo tenha a capacidade de reprodução e a precisão exigidas hoje em diversas atividades, entre as quais as telecomunicações e os sistemas de posicionamento global. Os pontos fracos dos osciladores de quartzo foram superados pelos relógios atômicos, que usam as ressonâncias dos átomos para medir tempo e freqüência. Assim como um pêndulo posto em movimento por um agente externo mostra um número certo de oscilações a intervalos de tempo regulares ou seja, tem freqüência determinada , um átomo também pode ser excitado por agentes externos (ondas eletromagnéticas) para atingir estados energéticos nos quais apresenta ressonâncias, ou oscilações, em uma freqüência bem definida, servindo como padrão para relógios. A principal vantagem do relógio atômico é sua reprodutibilidade em qualquer ponto do universo, já que todos os átomos de um determinado elemento são exatamente idênticos. A idéia de usar o átomo como elemento básico para um relógio nasceu há muitas décadas. Em 1949, nos Estados Unidos, o Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (NIST) iniciou a construção do primeiro relógio atômico, usando moléculas de amônia, mas os resultados não foram muito melhores que os fornecidos por osciladores de 1957, e alguns anos depois já eram o instrumento mais preciso para medir o tempo. Em 1967, a definição internacional do tempo passou a basear-se no relógio atômico de césio: hoje, um segundo a grandeza física mais bem medida equivale a 9.192.631.770 oscilações da freqüência de ressonância do átomo de césio. A margem de erro de um relógio atômico desses é de apenas alguns segundos em milhões de anos, contra um segundo por dia em um relógio de pulso comum (ver A precisão necessária no dia). Em todo o mundo, diferentes organizações mantidas em contato pelo Bureau Investigational de lHeure (BIH), investigam transições atômicas do césio e hidrogênio. A partir de escalas de tempo fornecidas por 150 relógios atômicos distribuídos pelo planeta, é calculada uma média ponderada, considerada o padrão primário de freqüência.
O desenvolvimento de relógios exige profundo conhecimento de mecânica quântica, física atômica e eletrônica moderna, mas sua aplicação em vários campos da ciência e da tecnologia justifica os investimentos. Um dos mais importantes usos dos relógios atômicos ocorre no sistema de navegação. Uma embarcação pode ser localizada com base no Sol ou em uma estrela: tendo-se tempo e posição do astro no instante presente e sua posição relativa em um instante e local de referência, alguns cálculos, hoje automatizados por computadores, posicionam a embarcação com erro inferior a 1 km. Os relógios a bordo são sincronizados por sinais emitidos por estações especiais. Sistemas mais modernos, no entanto, baseiam-se em técnicas de rádio. Emissores de localização bem conhecida emitem sinais codificados e exatamente sincronizados. Em qualquer ponto da superfície da Terra, um receptor capta tais sinais e mede a diferença de chegada de cada um deles. Tendo essas informações é fácil determinar, por triangulação via satélite e com margem de erro de poucos metros, a posição do receptor. Essa é a base de funcionamento de sistemas como o de posicionamento global (GPS, de global posittoning system). O relógio atômico é fundamental nesses sistemas, pois é a única maneira de medir diferenças de tempo tão precisas para localizar o receptor. Os relógios atômicos também são essenciais em telecomunicações, pois a taxa de transmissão de informação por segundo está hoje na ordem de um megabit (um milhão de vezes a quantidade mínima de informação o dígito binário). Para evitar complicação na recepção (string identificatton) é necessária uma diferença entre transmissor e receptor menor que 101.Os, o que só é obtido com relógios atômicos de precisão e estabilidade superiores a esse limite. Canadá, Estados Unidos e França já usam relógios de césio nos entroncamentos principais das redes, assegurando sincronismo de 1011s. Na indústria, os relógios atômicos são usados para calibrar geradores de freqüência, sintetizadores, contadores e outros instrumentos que dependem de padrões de freqüência. A calibração de osciladores de quartzo comerciais também é feita com relógios atômicos de césio. Vários países mantêm transmissão constante de tempo, com base em relógios atômicos, para que instrumentos e relógios públicos sejam calibrados, permitindo sincronismo em todo o seu território. E não pode deixar de ser mencionada a importância do relógio atômico como instrumento de pesquisa básica. A precisão nas medidas de tem-1 po tem proporcionado enorme avanço em física atômica, física quântica, relatividade, eletrônica e outros campos. Os países desenvolvidos investem muito em pesquisas inovadoras na área de metrologia de tempo, por seu valor tecnológico: os Estados Unidos têm o NIST e a França a Agência Nacional de Metrologia (BNM), por exemplo. Nessa área, o Brasil mostra grande atraso tecnológico. Não há no país qualquer padrão primário e os institutos nacionais de pesquisa não têm se preocupado com essa questão. Para reduzir essa diferença entre o Brasil e os países desenvolvidos, o Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo, Iniciou um programa de metrologia de tempo e freqüência. Apoiado pelo Instituto Nacional de Metrologia (lnmetro), pela Universidade de Campinas (Unicamp) e pelo Observatório Nacional do Rio de Janeiro, o programa é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pelo Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT), do Ministério da Ciência e Tecnologia. O programa visa desenvolver a metrologia científica do país, além de tentar dominar a tecnologia nessa área. Para um país que espera iniciar o próximo milênio como uma possível potência técnIco-científica, com seu próprio satélite, é de extrema importância dominar ta tecnologia, principalmente para poder acompanhar os avanços na área da metrologia e suas conseqüências econômico-industriais. O primeiro passo do programa de metrologia de tempo e freqüência do Instituto de Física foi a construção de um relógio atômico convencional, operando com feixe atômico de césio (figura 1). O dispositivo, porém, conta com uma inovação: o uso de lasers de diodo (mais baratos que os normalmente usados nesses relógios), que passam por um processo de estabilização, para que a largura da faixa de emissão seja estreitada e essa emissão seja regulada na freqüência adequada, garantindo a preparação dos átomos e o diagnóstico da fluorescência.
O feixe atômico de césio interage com um primeiro laser após sair do forno, e todos os átomos são convertidos, através de efeitos ópticos, para um só estado (F=3). Essa etapa é chamada de preparação dos átomos em um único estado. Uma vez preparado, o feixe penetra em uma cavidade onde há radiofreqüência (radiação eletromagnética com comprimento de onda na região das microondas), capaz de fazer os átomos passarem para o estado F=4. Alguns átomos continuam no estado F=3 ao sair da cavidade, mas muitos emergem em F=4 e podem ser analisados quando interagem com um segundo laser, sintonizado na freqüência adequada. Nessa interação, os átomos em F=4 absorvem e reemitem a luz do laser, e tal reemissão (fluorescência) é convertida, por um sistema de lentes e detectores, em um sinal elétrico que pode ser medido por um osciloscópio e processado por um microcomputador. A presença de fluorescência indica que os átomos, ao atravessar a cavidade, passaram de F=3 para F=4. Quanto mais intensa a fluorescência, maior o número de átomos que mudaram de estado: a intensidade da fluorescência reflete diretamente a interação dos átomos com a radiação eletromagnética. Variando a freqüência dessa radiação, a máxima fluorescência ocorre quando ela é exatamente de 9.192.631.770 Hz (figura 2). O relógio atômico procura manter inalterada a radiação que produz o máximo de fluorescência, para garantir o fator da freqüência. Para isso, é preciso todo um sistema que analise o processo e introduza correções de modo a manter a freqüência no valor exato, aquele que define a unidade segundo. Alguns detalhes técnicos são importantes no relógio atômico. A cavidade pela qual os átomos passam, e na qual injeta-se a radiação de microondas, é dividida em duas partes. Essa técnica de dividir a interação dos átomos em duas zonas conhecida como método das franjas de Ramsey foi desenvolvida por Norman Ramsey (premiado com o Nobel de Física em 1989) como uma alternativa para aumentar a precisão da medida, e tem amplo uso tanto em metrologia de tempo e freqüência quanto em métodos espectroscópicos de modo geral. A geração das microondas injetadas na cavidade é normalmente iniciada com um oscilador de quartzo que produz a freqüência de 10 megahertz (um megahertz, ou MHz, equivale a milhão de ciclos por segundo), multiplicada atingir 9.192.631.770 Hz. O sistema gerador é realimentado de modo a corrigir qualquer variação do sinal atômico, mantendo exata a freqüência que alimenta a cavidade e bem precisa a freqüência-padrão. A cavidade de radiofreqüência, feita de cobre, fica no interior de uma blindagem (figura 3) de metal especial (micrometal), para evitar interferência de campos magnéticos naturais (como o da Terra) ou artificiais. Tal blindagem, assim como os conjuntos de lentes e detectores vinculados aos Iasers e o feixe atômico, fica contida em um reservatório de aço inoxidável (figura 4) com pressão interna inferior a 10-7 torr (unidade equivalente a milímetros de mercúrio) nesse ambiente altamente rarefeito o feixe atômico desloca-se sem colisões com gases estranhos. Os primeiros resultados obtidos permitem estimar para o relógio de São Carlos uma precisão de 1:109, o que implica margem de erro inferior a um segundo em mais de um século. A avaliação correta de um relógio atômico é feita comparando-o com outros relógios do mesmo tipo, o que permite avaliar desvios relativos e prescrever correções. Isso acontecerá em breve, através de contatos com instituições internacionais e com o Observatório Nacional do Rio de Janeiro. Com base no sucesso obtido com esse primeiro relógio, o laboratório iniciou novo programa, visando construir um modelo mais avançado, que utilizará átomos resfriados por Iaser e possibilitará melhorar em até 100 vezes a precisão atual. O princípio básico do novo modelo está na produção de uma nuvem atômica a alguns milionésimos de grau acima do zero absoluto (00K ou -273C). Tais átomos frios serão então lançados para cima, como em uma fonte, e seu movimento ascendente e descendente permite construir um relógio de precisão fantástica. Já em desenvolvimento em pelo menos dois países (Estados unidos e França), o novo relógio atômico permitirá medições de tempo até 100 mil vezes mais precisas que as atuais. Tamanha precisão possibilitará experimentos hoje impossíveis (na área de cosmologia e ondas gravitacionais, exemplo), além de testes de teorias atômicas. Existindo um desses relógios no Brasil, tais experimentos poderão ser realizados aqui, o que incluirá o país no seleto grupo que não só domina a tecnologia de tempo e freqüência, mas também investe em avanços nessa área. Créditos:
Instituto de Física de São Carlos, Universidade de São Paulo |